Prolongando uma mui venerada tradição, a música continuava a receber deixas do cinema: no novo milénio, por exemplo, davam nas vistas Fantômas ou Black Rebel Motorcycle Club, gente que transferia o poder evocativo de um domínio para o outro numa altura em que o rock andava à cata de emoções novas. Mas, se é verdade que Strokes, Interpol, Liars ou White Stripes valorizavam sobretudo aspectos documentais na sua produção, no caso dos Editors bastava escutar ‘Camera’ (2005) para identificar um programa artístico e ideológico diverso: “Look at us/ Through the lens of a camera/ Does it remove/ All of our pain// If we run/ They'll look in the back room/ Where we hide/ All of our feelings”, diziam, quebrando múltiplos protocolos e assumindo uma vulnerabilidade ausente nos seus pares.
Era um manifesto positivo e construtivo, mas também o inverso, como se a unidade humana pudesse apenas ser alcançada na contradição íntima do sujeito. Desde então, de modo visceral, é por darem sentido às mais inesperadas conjunções e desconexões das nossas vidas na sua sala de montagem que a eles vamos regressando, uma e outra vez.
Não só atentos ao que se passava em Londres ou Los Angeles, na altura, melómanos de todo o mundo estavam de olhos postos em Seattle ou Manchester. Decididamente, os dEUS não estavam no sítio certo: Antuérpia, início de 90s.
Mas, vendo bem, à distância, conhecida ou ignorada, há um elemento comum à música desse tempo: a iconoclastia. Quer dizer: então, por cada Metallica havia uns Massive Attack ou My Bloody Valentine, por cada Pearl Jam uns Primal Scream, por cada R.E.M. uns Rage Against The Machine, uns Radiohead ou Red Hot Chili Peppers, etc, etc. Ou seja, fosse de onde fosse, gente que tinha feito da exceção a regra, e da condição marginal uma identidade própria.
Ainda assim, os dEUS, de Tom Barman e Klaas Janzoons, aparentavam ter uma premissa mais complexa, como se, no passado, Charles Mingus tivesse gravado com Captain Beefheart e Leroy Jenkins com Tom Waits ou como se Don Cherry integrasse os Mothers of Invention, de Zappa, e, apesar de tudo, não tivessem deixado de tocar em bares. Ou “In a Bar, Under the Sea” (1997), diziam eles. Rock das profundezas, em regime de bar aberto? Está tudo convidado!
Não se sabia ao certo que ações monstruosas ou criminosas se poderiam imputar a essa mão amputada que, agora, se punha para aí a mexer. Mas sabia-se de onde vinha. ‘Oub’lá’, cantava-se, em finais da década de 80, sem disfarçar o sotaque e com dedos acusatórios no ar, enquanto se denunciava todo e qualquer símbolo de iliberalidade em Braga, e mais além. O nome andava nas bocas do mundo, e não só ao Direito era familiar o conceito de mortua manus: em plena Guerra Fria, “mão morta” era também um elemento soviético na doutrina de destruição mútua assegurada. Não admira, então, que a banda encenasse uma espécie de apocalipse zombie em palco, com as vísceras do rock bem visíveis, como na montra de um talho. Mas era a dissecação da hipocrisia que, ali, se expunha, noite após noite. E, em 1992, imagine-se o que seria obrigar quem assinou o Tratado de Maastricht a ouvir as canções de “Mutantes S.21”! Tudo, lá está, porque os Mão Morta se recusam a ver a realidade através de óculos cor-de-rosa. Desde então, com ensaios progressivamente mais mordazes, tornaram-se na banda dos nossos sonhos. Ou melhor, dos nossos pesadelos!
Em Coimbra e arredores, no virar do milénio, ninguém se admirou que Paulo Furtado viesse provocadoramente reivindicar estatuto lendário. Afinal, desde os tempos dos Tédio-Boys e, mais tarde, Wraygunn, que se habituou a pregar para convertidos, ainda que em cenários cada vez mais exóticos e extraordinários. Aliás, quando, em 2004, lançou “Eclesiastes 1.11”, com essa sua segunda banda, não poderia estar a falar de si, pois, se dizem esses versículos bíblicos que “Já não há lembrança das gerações passadas; nem das gerações futuras haverá lembrança entre os que virão depois delas”, pode igualmente afirmar-se que The Legendary Tigerman veio ao mundo para os contrariar.
Pouca gente, quanto ele, se empenha tanto em impedir que morram as memórias dos grandes que nos precederam, como Johnny Cash, Stranglers, Kid Creole, Bo Diddley, Hasil Adkins, Link Wray, Lee Hazlewood, Booker T., Eddie Cochran, Daniel Johnston ou Tom Waits, para nos ficarmos por alguns daqueles que ao longo dos anos cantou. Por isso, também, o seu tempo é mítico e a sua geografia é imaginária. E, no rock’n’roll, é disso que são feitas as lendas!
Numa era absolutamente escandalosa em termos de apresentação, e ancorados sobretudo nas figuras de Andy McCluskey e de Paul Humphreys, lá surgiram os OMD de fato e gravata, como engenheiros eletrotécnicos em dia de apresentar relatório ou estudantes de liceu a caminho do baile de finalistas. Não estavam sós, claro. Também os Kraftwerk de “Trans-Europe Express” (1977) ou o Gary Numan de “The Pleasure Principle” (1979) haviam cultivado a imagem e, aqui, o cálculo era o mesmo: como evitar ser confundido com uma banda punk. Dir-se-ia que ansiavam por se ver projetados na idade adulta, com mais maturidade, mais elegância, mais cabeça, mais literatura à mistura.
Mas basta pensar em “Organisation” (1980) ou “Architecture & Morality” (1981) para concluir que tinham as emoções a borbulhar. Em termos esquemáticos, por mais distância que procurassem ter dos objetos que criavam, por mais intelectual que fosse a sua abordagem, não podiam evitar que a sua música provocasse reações imprevisíveis em quem a escutava. E chorava-se, amava-se, dançava-se e gritava-se ao som dos OMD. Felizmente, assim é até hoje!
Associado a uma espécie de insurreição hormonal permanente, no indivíduo, e, logo de seguida, àquele tipo de indignação capaz de conduzir a grandes transformações comportamentais, no coletivo, o rock entre nós foi relativamente disciplinado até ao surgimento de uma geração efetivamente com as emoções “À Flor da Pele” (1981).
Não é de espantar que os UHF, de António Manuel Ribeiro, tenham ficado como arautos de um tempo em que se tomou consciência que as promessas resultantes da conquista da liberdade política não alcançavam dimensão cultural. “Ele andava por aí/ Como tu e eu andamos”, começava ‘Jorge Morreu’ (1979), um prodígio de coloquialismo poético que apresentava a banda ao público e a tornava um só com o público: “Ele tinha a tua cara/ Ele tinha a minha cara”.
Depois, o sucesso, com singles e álbuns que promoviam algo de muito simples: a capacidade de a poesia violentar, desestabilizar e redimir a realidade mais bruta, a ingratidão mais crua, a iniquidade mais perversa, custe o que custar.
Nunca deixou de ser assim, com canções mais cheias de mundo, história e desassossego. Só temos a agradecer!
Subitamente, no alvor de uma nova década, as modas ditavam que se cantasse em português. Azar dos músicos fundadores da banda, que tiveram de escrever letras novas para o disco de estreia da sua banda, “Taxi” (1981), originalmente em inglês, e sorte para os demais que, assim, puderam andar pela rua a cantarolar coisas como “Quem vê TV/ Sofre mais que no WC” sem ter de fingir dominar a língua de Shakespeare.
Autorreferencial, reativo, lúdico, liberal e exoticamente sincopado, tratava-se, à sua maneira, de um disco de intervenção, na medida em que alargava como poucos o campo de possibilidades na música nacional contemporânea.
Mas basta lembrar ‘Chiclete’ para confirmar a sintonia com a vida quotidiana do seu tempo: “E como tudo o que é coisa que promete/ A gente vê como uma chiclete/ Que se prova, mastiga e deita fora, sem demora// Como esta música é produto acabado/ Da sociedade de consumo imediato/ Como tudo o que se promete nesta vida, chiclete”.
Como quem não quer a coisa, provaram-se elásticos o suficiente para ainda cá andar. Sorte nossa!
Do muito que passou da Primeira para a Segunda Internacional, ali, de meados a finais do século dezanove, pouco se repetiu tanto quanto o refrão de uma canção, que dizia assim: “Bem unidos façamos/ Nesta luta final/ Duma Terra sem amos/ A Internacional” (na versão portuguesa), cantava a alma do proletariado, com o braço esquerdo erguido.
Não admira que a banda de Edgey Pires e Delila Paz tenha adotado o nome que adotou, pronta que está a dizer coisas como estas: “We'll leave behind our chains and sorrow/ We'll burn the streets, regrow the forest/ We'll rob the richest, give to the poorest!” (in ‘Life, Liberty and the Pursuit of Indian Blood’) ou “We speak in a different fashion/ Our language is direct action” (in ‘1968’), as labaredas das palavras alimentadas por uma guitarra em efusão pirómana.
Filiados na canção engajada, mas não ignorando ícones de dissidência de outros quadrantes, a primeira revolução a que aludem é na música (atente-se às referências de ‘Soul on Fire’: “Lately I've been feelin' Kind Of Blue/ Way down In The Jungle Groove/ Paranoid, All Eyez On Me/ Rumours circle”). Mas, se a da política vier atrás, melhor ainda!
Pele descorada, lábios pintados a régua e esquadro, guarda-roupa a desafiar futuros estudos de antropometria e, em palco, uma rigidez cadavérica. Cercados por pranchas de sintetizadores, Phil Oakley, Joanne Catherall e Susan Ann Sulley pareciam figurantes saídos de um episódio de “Doctor Who”, deixando no ar a pergunta: mas, serão humanos?
Claro que sim. E, nem por acaso, ‘Human’, uma espécie de canto do cisne dos anos 80, tinha precisamente estes versos como refrão: “I'm only human/ Of flesh and blood I'm made/ Human/ Born to make mistakes”. Aliás, nessa altura, em 1986, poderia dizer-se que, sim, como poucos, os Human League eram uma fidelíssima representação da espécie. Para muitos, até, em termos tecnológicos, culturais, políticos, emocionais, o que se quiser, passar de “Dare” (1981) a “Hysteria” (1984) foi uma espécie de atualização forçada: o futuro era agora, o progresso seria uma inevitabilidade. Bom, se em termos musicais as suas previsões se provaram corretíssimas, em termos sociais dir-se-ia que há espaço para melhorar. O que só confirma quão crucial será ouvir tudo o que ainda têm para nos dizer!
Por trás do aparente anacronismo – afinal, a sua estreia em CD intitulava-se “Vinyl” –, depositava-se fé no porvir, exatamente da mesma maneira que no latente provincianismo que se lhes imputava se adivinhava fome de mundo. Mas ao longo destes 25 anos os Gift revelaram-se um exemplo a enfatizar a implícita desordem dos nossos anseios.
Aliás, ao olhar para trás, para este quarto de século, dá-se mais pelo tempo que se ganhou do que pelo que se perdeu –um paradoxo de que se alimentou irrepreensivelmente “Verão” (2019), onde cada tema reclamava uma duração muitosua, como o fruto da mente de um arquiteto de catedrais que tem de equilibrar estados de construção e contemplação.
Há na discografia da banda espaço para um e outro, claro, mas é por aparentarem reconhecer continuamente o conjunto de circunstâncias em que a cada momento se encontram, e por em simultâneo se recusarem a nele permanecer, que Nuno Gonçalves, Miguel Ribeiro, Sónia Tavares e John Gonçalves a foram conseguindo sustentar.
Com pompa e sem preconceitos, partiram à deriva pela pop deste século, e nós dançámos com eles no pó da estrada.
É tão rico o seu percurso, que, se quisesse, não teria de contar uma só piada. Bastaria sentar-se em silêncio à nossa frente, como numa performance de Marina Abramovic, ou assim, e assistir ao desfilar de emoções no nosso rosto.
Pois, tal como a artista conceptual um dia percebeu que poderia fazer arte a partir de tudo e de nada, também Herman José cedo compreendeu que, no humor, já o cinema-mudo o ensinava, a própria presença física era a matéria-prima.
Assim, entre finais de 70 e meados de 80, deu à luz uma série de inesquecíveis personagens que foi cultivando em programas como “O Tal Canal”, “Hermanias”, “Humor de Perdição” ou, já em finais de 90, “Herman Enciclopédia”, retratos mais ou menos absurdos, mais ou menos satíricos, paródicos, mordazes, farsistas ou fiéis, face ao quotidiano.
Mas, por mais aperfeiçoadas que estivessem as suas rotinas, notabilizava-se pela forma instintiva em como subvertia o cânone da comédia, pela sua irreprimível espontaneidade. Como peixe na água em talk shows ou no stand-up, faz hoje o que fez sempre: num país ensinado a respeitar o choro, ver o que acontece quando se aprende a respeitar o riso.
A cena tem dez anos, mas alterem-se os intervenientes e podia ter vinte, trinta, quarenta ou cinquenta: estamos, ali, a meia-nau, passamos os olhos pela cabine, vemos quem está ao leme e, com uma guinada, caímos do convés ao porão.
Culpem-se os Pixies, os Placebo, os Muse, os Talking Heads ou os Violent Femmes, não interessa, porque nesse momento já estamos todos como aqueles velejadores antigos, que diziam: “Navegar é preciso; viver não é preciso”.
Parecia ter sido feito à medida dessa ambição, o Batô, quando há 50 anos abriu, em Leça, com o interior revestido a madeira, vigias em vez de janelas, cordas, roldanas, mastros e varandins, fazendo de cada cliente um elemento da tripulação e alterando para sempre o rumo da noite do Grande Porto. Sim, remou contra ventos e marés para se manter à tona, mas quem nunca? A sua vida é como a nossa, sempre que queremos torná-la grande, já dizia o poeta.
Melhor destino não pode haver para um espaço que sobrevive a tudo – até à música eletrónica, diz-se, meio a brincar. E quando um DJ saca um tesouro do fundo do baú: nova guinada e lá vamos nós. Aqui, ninguém abandona o barco!
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